26. A liberdade tem de passar por aqui
Para alguém com menos de 30 anos, o impacto de Gary Lineker verifica-se, em primeiro lugar, para lá das linhas do relvado. Aliás, através de uma pesquisa rápida pelo seu nome nas imagens da Google, o ex-avançado aparece mais vezes de fato do que chuteiras e calções e os seus tweets são mais vezes comentados do que os seus golos.
Contudo, é importante não esquecer: 329 golos em 649 jogos, 80 internacionalizações, jogador inglês com mais golos em mundiais, melhor marcador do histórico campeonato do mundo de 1986 e do campeonato inglês por 3 clubes diferentes (Leicester, Everton e Spurs). Felizmente para ele, ainda é de uma época em que os títulos não eram a única condição para avaliar a qualidade de um atleta.
Nesta altura do campeonato, já todos sabemos o que se passou: Lineker, no passado dia 7 de Março, criticou abertamente as mais recentes políticas de imigração em Inglaterra, comparandos-as com a Alemanha nazi dos anos 30. Depois disto, seguiu-se o percurso habitual das polémicas no Twitter: os que acham muito mal um apresentador de uma estação pública ter opiniões políticas tão vincadas; os que acham muito bem; e os que não acham nada.
Resultado? A BBC decidiu-se pela suspensão, uma vez que considerou que este comportamento seria uma violação das normas de imparcialidade que todos os trabalhadores da casa têm que cumprir. Esqueceram-se de dois pequenos pormenores: Gary Lineker trabalha como freelancer (mesmo sendo o apresentador mais bem pago da BBC – 1,35M libras/ano) e é provavelmente uma das figuras mais consensuais e acarinhadas no meio.
As questões que me parecem mais interessantes e relevantes para o debate sobre este tema são as seguintes:
1. Onde é que estava enfiado o caderno das normas de imparcialidade quando o mesmo Gary Lineker há uns meses criticou abertamente a organização do Mundial no Catar? O problema aqui parece demasiado óbvio – a crítica é aberta e clara ao governo inglês;
2. Onde é que está a linha que separa as opiniões políticas relevantes das irrelevantes? As frases de Gary Lineker só serão imortalizadas se forem sobre o quão injusto é o futebol porque, no fim, ganha sempre a Alemanha? Ou a referência à Alemanha de Hitler é “demasiado política” para o gosto do governo de Rishi Sunak?;
3. Quando é que será que chegaremos à conclusão coletiva que as nossas raivas políticas são demasiado seletivas? A opinião do Gary Lineker é bastante consensual. O que se passa no Canal da Mancha é gravíssimo e levanta muitas questões sobre dignidade e liberdade humanas. Só é tema para os conservadores porque é dito por alguém que não se enquadra ideologicamente com os mesmos. O mesmo acontece quando a situação é a oposta. Andamos sempre neste jogo ideológico do gato e do rato;
4. Quando é que terminará a triste ideia de que todos aqueles que estão ligados ao futebol são grunhos e que não devem ter opiniões públicas sobre política e tudo o que está associado à mesma? Como é que em 2023 isto ainda é um tema? Como é que, por exemplo, em Portugal, o facto de Héctor Bellerin ser politizado possa ser visto como factor de distração profisisonal e motivo de chacota do internacional espanhol? É mesmo este o mundo que queremos deixar para as próximas gerações?
Atenção, não me considero ingénuo sobre este tema. Acredito que seja cada vez mais complicado gerir organizações desta dimensão, onde existam trabalhadores cuja esfera profissional e a presença nas redes sociais seja difícil de distinguir e de diluir. Pá, mas a vida e a evolução das sociedades são mesmo assim. Só através de um debate honesto e sério, sem merdas, entre as partes é que me parece viável que se chegue a um possível lugar comum e saudável. Para mim, do alto dos meus 27 anos a viver em democracia, nada é superior e anterior à liberdade de expressão e de opinião, custe ela o que custar. A liberdade terá sempre de andar por aqui, que não sobrem dúvidas sobre isso.
Sexta há mais.
Diogo Maia